Última obra de Zé Celso antes de morrer foi inspirada no líder Davi Kopenawa e no povo Yanomami


A peça “A queda do céu” é inspirada no livro homônimo, do líder indígena Davi Kopenawa e o antropólogo francês, Bruce Albert, que narra a trajetória do povo Yanomami. Dramaturgo morreu aos 86 anos, vítima de um incêndio no apartamento em que morava, em São Paulo. Davi Kopenawa e Zé Celso no lançamento do livro “A Queda do Céu”, em 2015, em São Paulo.
Claudio Tavares/ISA
A trajetória, a luta e a cultura do líder indígena Davi Kopenawa e do povo Yanomami foi transformada em peça teatral pelo ícone das artes cênicas brasileiras, o dramaturgo, diretor e ator Zé Celso. “A queda do céu”, que deve estrear ano que vem, foi a última criação de Zé Celso.
O dramaturgo morreu aos 86 anos, vítima de um incêndio no apartamento em que morava, em São Paulo. A missa de sétimo dia será celebrada nesta quinta-feira (13), no Centro da capital paulista.
Zé Celso já havia criado toda a dramaturgia da obra e, nos últimos dias de vida, trabalhava nas cenas finais da peça. O plano dele era levar a história Yanomami aos palcos de teatro até dezembro deste ano. Mas, agora, os planos mudaram e tudo ficou para 2024, segundo o assistente pessoal do dramaturgo, Vinicius Tardite.
A obra é uma adaptação teatral do livro “A queda do céu” do líder indígena Davi Kopenawa e o antropólogo francês, Bruce Albert, publicado em 2010.
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Dramaturgo, diretor e ator Zé Celso.
Jornal Nacional/ Reprodução
Marcado pela criação de uma arte experimental, política e sensorial, Zé Celso queria evidenciar a importância dos povos indígenas e fazer do teatro mais uma maneira das palavras do xamã Davi Kopenawa, principal liderança indígena do povo Yanomami, chegarem até as pessoas.
Zé Celso criou a peça em meio ao decreto de emergência de saúde pública na Terra Indígena Yanomami. Alvo de garimpeiros há décadas, o maior território indígena do Brasil enfrentou nos últimos anos o avanço desenfreado da atividade ilegal no território, que afetou a sobrevivência dos indígenas.
Segundo o assistente pessoal do dramaturgo, Vinicius Tardite, o objetivo da peça é potencializar o testemunho de Kopenawa. A ideia é defender os povos originários e natureza através de uma visão não racional.
“O teatro não é uma coisa apenas visual, apenas auditiva, é uma imersão e, portanto, toma as pessoas por outras zonas que não apenas a racional. Não é que nós vamos defender a causa indígena ou a causa Yanomami de um ponto de vista racional, mas apresentar argumentos para que esse povo seja preservado, a natureza onde eles habitam seja preservada”, explicou Vinicius Tardite, que também é assistente de direção da peça.
Zé Celso em saio da peça ‘Rei da Vela’ no Teatro Paulo Autran do SESC Pinheiros, em 2017.
Daniel Teixeira/Estadão Conteúdo/Arquivo
Zé Celso conheceu o livro, o primeiro escrito por um Yanomami, pouco tempo após seu lançamento. Inicialmente, A queda do céu foi publicada em francês e traduzida para o idioma português cinco anos depois, em 2015.
Foi nesse ano que o dramaturgo leu o livro e, de imediato, teve em interesse em transformá-lo em peça. No entanto, a ideia só tomou forma sete anos depois, em 2022, quando Zé se encontrou com Kopenawa em Araraquara.
“Zé leu o livro quando foi traduzido para português e já teve interesse. Mais recentemente, ele leu novamente e no ano passado falou com o Davi Kopenawa. Ele voltou a ler o livro com o objetivo de adaptar”, explicou Vinicius.
O processo de adaptação da obra começou ainda em 2022. Zé Celso convidou um grupo de pessoas do Teatro Oficina Uzyna Uzona, sede da companhia teatral criada pelo dramaturgo na região central da capital paulista, para trabalhar com ele. Com eles, o ator fez a dramaturgia da peça e, mais recentemente, trabalhava nas cenas ao lado de Fernando de Carvalho, com quem já tinha feito a tradução, adaptação e encenação de “Fausto”.
Zé Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina em São Paulo, em imagem de março de 2017
Daniel Teixeira/Estadão Conteúdo/Arquivo
O elenco ainda não havia sido formado, mas os artistas já cogitavam alguns atores, como os da própria companhia, e outros atores indígenas, como a artista Zahy Tentehar. Com a partida do ator, a peça só deve estrear em 2024.
“Com o Zé já seria um trabalho de muito esforço para que ficasse pronto ainda esse ano, quer dizer, nunca está pronto, está sempre em construção. Agora, com o que aconteceu, com o fato do Zé não estar mais aqui, muda bastante, né? Muda profundamente o trabalho”, disse Tardite.
Para criar a peça, os artistas também precisaram conversar com o antropólogo Bruce Albert, que escreveu o livro a partir das falas de Davi. Segundo Vinicius, o francês achou que o trabalho era importante e acordou que uma contribuição da bilheteria seria repassada para a Hutukara Associação Yanomami (HAY), que tem como presidente o líder Davi Kopenawa.
“O Bruce falou que achava muito importante que a gente estivesse fazendo esse trabalho, porque era mais uma maneira das palavras do xamã Yanomami chegarem a mais pessoas, né? Quer dizer, o livro era uma forma de que essas palavras alcançassem o número maior de pessoas e que, então, o livro transformado em peça já era mais um movimento nesse sentido”, explicou ele.
José Celso Martinez Corrêa durante entrevista realizada no Teatro Oficina, em São Paulo, em imagem de setembro de 1995
Agliberto Lima/Estadão Conteúdo/Arquivo
Zé Celso era conhecido pela maneira excêntrica e ousada de montar suas peças de teatro e provocar e interagir com a plateia. Ele também ficou conhecido por levar o modernismo e o tropicalismo para a dramaturgia brasileira.
Ele iniciou a carreira no final da década de 1950 com duas peças de sua autoria: “Vento Forte para Papagaio Subir” e “A Incubadeira”. Sua influência artística foi além dos palcos, aparecendo também em obras do cinema, como “O rei da vela” e “25”.
Sem medo de experimentações e com constante desejo de renovação, Zé Celso provocou atores e público, criando um teatro mais sensorial, sempre guiado pela realidade política e cultura do país.
De acordo com Vinicius Tardite, ele também tinha uma forte identificação com a cultura indígena e, neto de uma indígena, “reivindicava” o lugar num sentido poético. Além disso, valorizava a coletividade dos povos originários.
“Ele sempre fazia questão de dizer que a avó dele era indígena e falava disso com muito orgulho. Às vezes era encarado de maneira politicamente incorreta ele reivindicar esse lugar, mas era mais no sentido poético do que no sentido político identitário, era num sentido poético a identificação dele como indígena, uma cosmo visão mesmo”, ressaltou Tardite.
“O Zé era essa pessoa da dádiva, ele era uma pessoa generosa, generosa com o conhecimento que tinha, facilitadora da vida de quem estava envolta dele, em todos os sentidos, era uma pessoa que procurava estar sempre dando algo para alguém”.
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